RIO — Um véu cai sobre o rosto de Martha Gomes Jardim. Com um vestido que não deixa seu corpo à mostra, a brasileira, que se converteu ao Islã há três anos, descreve ter temido por sua segurança imediatamente após os ataques terroristas na França. Demonstrando firmeza, ela garante, ao contrário do relato de outras muçulmanas no Brasil, que não deixará de sair de casa por medo de retaliações.
— Senti receio e pensei que os atentados poderiam representar perigo para mim e para as muçulmanas de modo de geral. Mas logo pensei que não deveria sentir medo e enfrentar com naturalidade — conta Martha, natural de Curitiba.
Os ataques ao jornal satírico “Charlie Hebdo“ e a um mercado de produtos judaicos neste mês tiveram reflexos no Brasil, com registros de casos de agressão a muçulmanos e aumento da preocupação com a discriminação religiosa. Pela primeira vez, atos de violência foram cometidos em série contra fiéis, de acordo com a Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ).
Em São Paulo, a Mesquita Brasil, a maior do país, foi alvo de pichações, enquanto o carro de um islamita sofreu ação de vândalos. Em gestos ainda mais agressivos, uma mulher levou uma pedrada na perna e outra, chamada de “muçulmana maldita”, recebeu uma cusparada.
Embora a comunidade muçulmana não considere que os casos representam um fenômeno, há uma preocupação com a visão do público sobre o Islã — cujo nome deriva da raiz árabe “Salam”, que significa paz. Representantes tentam desvincular a religião da ação de radicais e ressaltam a boa convivência entre fiéis de diferentes crenças.
— Vivemos normalmente no Brasil, salvo em ocasiões excepcionais. O que ouvimos muito são piadas e brincadeiras. Não é de hoje que o Islã é caracterizado por inúmeras distorções. As pessoas que só o conhecem por meio de filmes e da mídia em geral irão formar uma opinião de que todos os muçulmanos são violentos e radicais — avalia Sami Isbelle, diretor da SBMRJ.
Acostumado com a informalidade dos brasileiros, o argelino Sofiane Faci, residente no Rio, conta já ter sido chamado de homem-bomba até por um policial. Ele atribui o comentário à falta de conhecimento e à reprodução de estereótipos. Faci chama atenção ainda para a diferença da relação com os muçulmanos no Brasil e na França, onde morou por nove anos.
‘O que ouvimos muito são piadas e brincadeiras. Não é de hoje que o Islã é caracterizado por inúmeras distorções. As pessoas que só o conhecem por meio de filmes e da mídia em geral irão formar uma opinião de que todos os muçulmanos são violentos e radicais.’
— Não há muitos muçulmanos no Rio. A maioria dos meus amigos não tinha costume de sair e conviver com muçulmanos. Uma reação ingênua é reproduzir discursos preconceituosos sem a intenção de ser preconceituoso. Mas recebo de maneira leve. Aqui, a pessoa faz o comentário com um sorriso enorme, sem revelar ódio ou superioridade. Na França é diferente. Você sabe que a pessoa realmente pensa o que está falando — diz ele.
O argelino expressou preocupação com o aumento da intolerância religiosa no mundo e no Brasil, principalmente com as mulheres que usam véu.
— Soube do caso de uma muçulmana no Rio que está evitando sair de casa por medo. Isso é muito triste. A mídia tem que fazer alguma coisa para não criar esse preconceito. Para os homens é mais fácil. Não está escrito na minha testa que sou muçulmano — afirma Faci, acrescentando ter sentido cansaço após dias de intensos debates sobre os ataques em Paris. — É preciso separar claramente as três pessoas que cometeram os atentados do resto da comunidade. Não tenho que me justificar em relação ao que eles fizeram, mesmo que reivindiquem o Islã. Qualquer pessoa pode reivindicar o Islã. Por que tenho que me responsabilizar?
PRECONCEITO VELADO
De acordo com o brasileiro Fernando Celino, convertido ao Islã há nove anos e membro da SBMRJ, períodos pós-atentados terroristas trazem à tona um preconceito velado no Brasil.
— Aqui não há um preconceito claro. Fica mais no campo da brincadeira. Quando acontecem crimes bárbaros como os da França, no entanto, vê-se uma escalada da islamofobia no mundo. Infelizmente, o Brasil sente esse reflexo e um preconceito escondido acaba se mostrando mais claramente — afirma.
Os números sobre a comunidade muçulmana no Brasil divergem. Enquanto o Censo contabiliza cerca de 35 mil, instituições islâmicas apontam mais de 1 milhão. No Rio, há apenas uma mesquita, frequentada por cerca de 300 membros.
Para o xeque sírio Mohamad Al Bukai, que vive em São Paulo, é preciso combater a intolerância religiosa com mais conhecimento sobre o Islã.
— O Brasil é um país feito por muitas culturas que sempre conviveram juntas. A consciência do brasileiro vai diferenciar o Islã como religião e o terrorismo como um crime que não tem religião — destacou Bukai, que esteve no Rio participar de um evento sobre intolerância religiosa. — Qualquer preconceito é fruto da ignorância, que é combatida com o conhecimento.
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